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ARTIGOS

HISTÓRIA DE MEU BISAVÔ

 


Igreja da Sé, Nossa Senhora da Vitória, São Luís-Ma.

Maria da Glória Sá Rosa*

“O tempo define, simplifica e sem dúvida empobrece as coisas”. (Jorge Luís Borges)

Não conheci pessoalmente meu bisavô, Antônio Ferreira, mas é como se o tivesse visto e convivido mil anos com ele, tão forte é sua presença dentro de mim. Na pequena cidade do Ceará, em que viveu toda uma existência, seu nome permanece nas ruas, nas escolas e hospitais que ajudou a fundar. Sem ter feito estudos superiores, atuava como advogado a quem a população recorria nos casos difíceis de resolver. Por diversas vezes, administrou a cidade, preocupado acima de tudo com os problemas da população carente. Era daqueles cidadãos para os quais a palavra valia um fio de cabelo. Extremamente religioso, sentiu-se agraciado por Deus, quando um dos filhos ingressou no seminário decidido a ser padre.

Minha mãe, que o adorava, gostava de lembrar as festas celebradas por ocasião da ordenação daquele que seria mais tarde Padre Carlos Sousa Ferreira, amado e reverenciado por cada membro da família, orgulho da cidade e do Estado.

Muito mais que uma pessoa meu bisavô era um mito, principalmente depois que desapareceu da cidade sem deixar rastro. Nunca mais foi visto no correio de onde pontualmente remetia a correspondência para os filhos, nas festas das escolas e muito menos nas missas dominicais, onde podia ser observado no banquinho de luxo, com almofada de veludo, para os joelhos, no qual o nome gravado em ouro definia a classe social a que pertencia.

O desaparecimento de meu bisavô ocorreu depois de uma viagem ao Maranhão, onde fora a convite de Padre Carlos para as festas da padroeira local. A partir daí, sumiu sem deixar sinais visíveis.

Minha bisavó vivia no casarão, só com os criados, fechada atrás de quatro paredes, como viúva abandonada. Não procurava explicações, não foi à polícia, o que aumentava a curiosidade em torno do caso.

Com o tempo, a cidade cansou de perguntar por ele. Muitas lendas surgiram e desfizeram-se como ondas na praia. Diziam que estava escondido no Maranhão, depois de ter atingido acidentalmente um homem. Outros comentavam que fugira para outro estado, depois que descobrira através de uma carta que, no passado, minha avó fora noiva de seu pior inimigo. Até que um dia a verdade veio à tona, através de uma criada que não suportou o peso do segredo e vomitou a verdade que a tantos atormentava. Meu bisavô, como cadáver insepulto, estava bem vivo num quarto do velho casarão, de onde não saía nem mesmo para as necessidades elementares. Chegara do Maranhão, altas horas da noite, calado, cabisbaixo, isolara-se no quarto onde apenas minha avô e uma criada tinham permissão de entrar. O que faria no silêncio daquelas paredes que ajudara a levantar anos atrás, quando só havia risos na casa outrora povoada de sonhos e crianças?

Como pecador que decide pagar em vida os malfeitos da humanidade, iniciou atormentado calvário, do qual a ninguém forneceu explicações. Contou a criada que muitas vezes o surpreendeu chorando, enquanto desfiava as contas do rosário.

Até que um dia, a cidade viu entrar no casarão a figura do filho padre, chamado às pressas para abençoar os últimos momentos do pai.

Ajoelhado ao pé da cama, o padre passou de confessor a penitente no choro convulsivo, em que repetia, dominado pelo desespero:

— Me perdoe, meu pai. Me dê sua benção. Não vá embora sem falar comigo, sem me dar seu perdão.

Só minha mãe assistiu a esse diálogo que marcou seus dias e do qual não falou ao resto da família.

As portas do casarão abriram-se para o embarque de meu bisavô à morada final, em que ricos e pobres se identificam.

O mistério continuava desafiando as consciências, multiplicando versões.

Segundo uma delas, meu avô descobrira no Maranhão o caso do filho padre com uma mulher, casada com um primo da família, em cuja casa ele se hospedava.

Horrorizado, censurou asperamente o filho que a tudo negou, acusando o pai de malicioso, capaz de ver pecado onde existia apenas afeto.

Meu bisavô teve vontade de acreditar, mas a presença de duas crianças, em tudo semelhantes ao sacerdote, dissipou as dúvidas. Depois de amarga discussão, em que se sentiu humilhado, ultrajado, deixou o Maranhão e escondeu a vergonha no silêncio da prisão domiciliar.

Segundo minha mãe, meu bisavô teve a sorte de não viver para ouvir falar dos sucessos profissionais de dois netos bastardos de cuja educação meu tio se encarregou.

Teria sido essa a verdadeira razão do isolamento de meu bisavô?

Um pai tão dedicado não deveria compreender e perdoar as fraquezas do filho?

Ou teriam prevalecido os rígidos princípios do cidadão honrado para o qual as leis da religião estavam acima das familiares?

Parodiando Machado de Assis, lembramos que as pessoas que poderiam esclarecer as dúvidas estavam mortas e enterradas.

O mistério permanece nas indagações que até hoje são sussurradas nas conversas tecidas ao pé do fogo da pequena cidade nordestina. Como diz Borges, o tempo empobrece as coisas. A memória esgarça até as mais vivas emoções. Meu bisavô é para a maioria da população apenas um nome numa rua, um retrato na parede.

Fonte: ROSA, Maria da Glória Sá. Contos de hoje e sempre: tecendo palavras. Colíder: Indústria Gráfica Miramar, 2002

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*Maria da Glória Sá Rosa. Professora e escritora. Nasceu em Mombaça, Ceará, no dia 4 de novembro de 1927, filha de Tertuliano Vieira e Sá e de Cleonice Chaves e Sá, tendo ido criança para Campo Grande, onde residia desde 1939 e faleceu em 28 de julho de 2016, aos 88 anos de idade. Graduou-se em Línguas Neo-Latinas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Participou em 1961 da fundação e instalação dos primeiros cursos superiores de Campo Grande, na Faculdade Dom Aquino de Filosofia, Ciências e Letras (FUCMT), embrião da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde lecionou durante 17 (dezessete) anos. Ali criou o Teatro Universitário Campo-grandense (TUC) e a revista Estudos Universitários. Foi coordenadora do Curso de Letras no qual promoveu diversos cursos e semanas literárias. Coordenou diversos festivais de teatro e de música em Campo Grande e produziu os programas Intercomunicação na TV Morena e Mensagem ao Mundo Feminino na Rádio Educação Rural. Em 1967 começou a trabalhar na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), onde chefiou vários de seus organismos culturais, promovendo exposições de artes plásticas, ciclos de conferências, cursos literários e o Projeto Prata da Casa, tendo sido responsável pela edição do disco de mesmo nome. Foi presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul e do Conselho Estadual de Cultura, onde atuou durante 20 (vinte) anos. Era professora aposentada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL) e da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA). Foi fundadora da Aliança Francesa de Campo Grande e do Cine Clube de Campo Grande. Publicou as obras: Cultura, Literatura e Língua Nacional (1976) em parceria com Albana Xavier Nogueira; Memória da Cultura e da Educação em Mato Grosso do Sul (1990), acompanhada de vídeo; Memória da Arte em Mato Grosso do Sul (1992), em parceria com Idara Duncan e Maria Adélia Menegazzo, acompanhada de vídeo; Deus Quer, o Homem Sonha, a Cidade Nasce (1999); Crônicas de Fim de Século (2001), Contos de Hoje e Sempre: Tecendo Palavras (2002); Artes Plásticas em Mato Grosso do Sul (2005), em parceria com Idara Duncan e Yara Penteado e A Música em Mato Grosso do Sul (2009), em parceria com Idara Duncan. Além de oito livros, publicou centenas de artigos sobre cultura nos jornais locais e fez inúmeras conferências sobre educação e cultura em todo o Estado, prefácios para autores de Mato Grosso do Sul e apresentações de catálogos de arte. Foi Assessora Cultural do Centro de Educação Integrada (CEI) em Campo Grande. Recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em 2007 e pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em 2012. Foi casada durante 56 anos com o engenheiro agrônomo e pecuarista José Ferreira Rosa, falecido em 4 de junho de 2008, com quem teve quatro filhos: José Carlos, José Boaventura (falecido), Luiz Fernando e Eva Regina e sete netos: André, Amanda, Paloma, Luiz Henrique, Maria Rita, Gabriel e Maria Thereza. A professora Glorinha é considerada ícone da educação e da cultura de Mato Grosso do Sul.


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