David
Castelo*
Por
que ser judeu? Por que buscar o judaísmo? Certa vez, minha avó
levantou seu dedo indicador e, em tom solene e de revelação,
me disse: “meu filho, nunca esqueça que somos judeus”.
Eu
morava então em Fortaleza e, na época, não havia
lá nenhuma comunidade judaica estabelecida. Por conseqüência,
era um ambiente sem muitas possibilidades de me oferecer referências
sobre o que seria um judeu.
Na
verdade, não ouvi só uma vez aquela frase de minha avó.
Ouvi repetidas vezes esta e outras referências sobre nossa origem.
Dizia ela: meu pai é “Pedro Freire, judeu, a cuja família
pertenciam as salinas do Boi Morto no Rio Grande do Norte”. Mas
como eu poderia ser judeu? Nós éramos católicos...
ou não?
Um
dia, me ocorreu perguntar a meu pai a razão de não comermos
carne de porco. “É uma carne suja”, foi a resposta.
Judeus não comem carne de porco, mas o fato de nós não
comermos porco nos fazia judeus? E por que quando abatemos um cordeiro
tiramos todo o sangue? Judeus comem carne sem sangue. Mas isso fazia
de nós judeus?
Achava
muito engraçado minha avó acender velas todas as sextas-feiras
ao cair da noite. Depois, soube que velas são acesas no Shabat.
Mas acender velas às sextas-feiras nos fazia judeus?
Sou
David Castelo. Castelo que antes era Teixeira e que chegou ao Brasil
no final do século XVIII como Góis e Mello. Primeiro em
Recife e em seguida no interior do Ceará, em Mombaça.
No sertão central do Ceará nascemos, vivemos e morremos
por nove gerações. A minha é a primeira a nascer
inteiramente em capitais. Mas cresci em nossa fazenda, em Mombaça,
comendo carne de cordeiro sem sangue e achando porco o bicho mais nojento
da criação.
Essas
e outras constatações sobre nossa origem judaica não
me respondiam o significado de ser judeu, como minha avó me dizia.
Então
por que razão resgatar o judaísmo?
Porque
atribuo o que melhor do legado de minha família à nossa
origem judaica. Sobretudo nossa capacidade de compreender e balizar
nossa conduta através da observância a leis e princípios
éticos.
Por
que retornar a um povo perseguido? Por que assumir tal risco?
Porque
um dia minha família foi forçada a camuflar aquilo que
de mais importante um indivíduo e um grupo têm: sua identidade
e por conseqüência sua dignidade.
Não
busquei o judaísmo por acreditar que era a única verdade
ou o único caminho para D’us, mas por acreditar que, para
mim, era o único caminho.
A
herança de minha família me trouxe o orgulho de ser Oliveira,
Vieira, Figueiredo, Freire, Góis e Mello, Teixeira e finalmente
Castelo. Nossas heranças, a obra construída por nossos
antepassados, são presentes, nossas primeiras bênçãos.
Através delas adquirimos nossas referências, sabemos de
onde viemos. Não fosse essa dádiva suficientemente grandiosa,
recebemos em acréscimo o direito de criticá-la, escolher
e levar conosco aquilo que verdadeiramente nos importa. Nossa herança
nos dá referências e nosso livre arbítrio nos permite
escolher o que julgamos melhor para nossas vidas.
Minha
herança vai bem além daquela construída por minha
família no Brasil. Nossa identidade roubada, mesmo após
dez gerações, reclamou seu lugar em minha herança.
Afinal,
que direito tinha um Papa ou sua igreja de impor a um povo que o melhor
para ele é negar sua identidade, e por conseqüência
sua dignidade?
Ainda
assim, o problema não é ser cristão ou ser judeu.
Quantos e quão queridos são meus amigos cristãos.
O problema é que alguém um dia decidiu para minha família
que, na verdade, o certo é ser católico. Não foi
decisão minha, não foi fruto do meu desejo nem conseqüência
do meu trabalho. Realizei então que pertencia tão somente
a mim a decisão de resgatar meu passado mais antigo.
Me
saber marrano ou não consumir carne suína não me
fazem judeu. Me faz judeu o desejo pelo retorno e o sentimento de pertencer
ao povo de Israel.
Compreendi
que David Castelo é apenas parte de minha identidade e passou
a não ser suficiente. Precisava voltar a ser David ben Avraham
Avinu. Necessitava retornar à casa do pai de todos nós!
E
é por isso que sou judeu!
Eu
gostaria de dedicar essa ocasião a minha avó, Joana Castelo
que, ao me revelar nosso passado, abriu a porta para meu futuro; a meus
pais pelo incentivo; a minha saudosa amiga Maria Claudia Ribeiro por
me apresentar o amigo a quem confiei meu processo de conversão,
o Rabino Alexandre Leone e finalmente agradeço, do mais fundo
de meu coração, ao carinho com o qual fui recebido pelo
Bnei, eu não poderia imaginar comunidade que melhor represente
Israel nesse momento.
Muito
obrigado!
(Fonte: Bnei Chalutzim, disponível em .
Acesso em 23 fev. 2008)
*David Castelo. Professor
da Faculdade Carlos Gomes – SP, David Castelo estudou regência
na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e é formado em
flauta doce pela Faculdade Santa Marcelina - SP, na classe da Profª.
Isa Poncet. No período de 1998 a 2003, David Castelo estudou
no Conservatório Real de Haia (Holanda), orientado por Reine-Marie
Verhagen e Peter van Heyghen. Nesta instituição obteve
o "The Post-Graduate Certificate for Advanced Studies"; o
"The First Phase Diploma" e o "The Seconde Phase Diploma"
(Master’s of Music - Soloist Diploma), sendo esta a mais alta
titulação concedida a um instrumentista na Europa. Ao
longo de sua formação estudou com: Ricardo Kanji, Edmundo
Hora, Cléa Galhano, Hugo Reyne, Sébastien Marq, Marion
Verbruggen e Kees Boeke. Como intérprete e palestrante tem atuado
nas principais capitais brasileiras bem como na Holanda, Alemanha e
Itália, destacando-se os seguintes eventos: Festival Internacional
Bach, solista junto à Orquestra Barroca do Conservatório
Real de Haia (dir. Jaap ter Linden), Rotterdam (Holanda), 1999; Festival
Internacional Bach de Amsterdam, solista junto à Orquestra Colegium
Musicum (dir. Tini Mathot), Holanda, 2001; Concerto de Abertura do Congresso
Internacional Jeroun Bosch, Den Bosch (Holanda), 2001; Festival Internacional
de Música Antiga de Deventer, solista junto à orquestra
Colegium Musicum Den Haag, Deventer (Holanda), 2002; Master Class de
flauta doce, Conservatório de Tatuí, São Paulo,
2003; Concerto Barroco, solista junto à Orquestra Sinfônica
Nacional (dir. Ligia Amadio), Rio de Janeiro, 2003; After-Christmas
Concert, Solista junto a orquestra Concerto Rotterdam (dir. Marien van
Staalen), Rotterdam, 2003; XII Curso Internacional sobre o Método
Kodály – Oficina de Flauta doce, São Paulo, 2004;
Semana de Música da Universidade Federal de Uberlândia
- Curso de Flauta doce, Uberlândia (MG), 2004; Festival Internacional
de Música de São Caetano do Sul, São Caetano do
Sul (SP), 2000, 2001, 2004 e 2005; Festival de Música de Londrina
(PR) 2007. Paralelamente ao seu trabalho musical, David Castelo tem
atuado como curador para projetos musicais nos Centros Culturais do
Banco do Brasil em São Paulo e Rio de Janeiro. Atualmente, David
Castelo desenvolve pesquisa em nível de pós-graduação
na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) discutindo os aspectos
de performance do repertório brasileiro do século XVIII,
recebendo orientação da Profª. Dra. Helena Jank.