ARTIGOS
RESPINGOS DA ESTRADA EM DEZ ATOS
Casarão
da família Fagundes (Lima) construído no ano de 1904 por
José Camilo de Lima, o José Fagundes, bisavô materno
do editor deste site, situado na confluência da rua Padre Sarmento
com a rua Manuel Irênio de Sousa.
Raugir Lima Cruz*
1.
Não
sei se posso considerar um canto da estrada aberta, como o doce poema
de Walt Whitman quando ele fala “A pé e de coração
leve/ eu enveredo pela estrada aberta (...)/ Daqui em diante não
peço mais boa sorte,/ boa sorte sou eu/ Daqui em diante não
lamento mais,/ não transfiro, não careço de nada;/
nada de queixas atrás das portas,/ de bibliotecas, de tristonhas
críticas; (...) Carrego ainda aqui os meus antigos fardos de delícias,
(...)”. Talvez seja apenas pretensão de minha parte, porém,
não deixa de ser um mergulho numa estrada aberta rumo ao passado,
que às vezes considero tão remoto e marcado por alguns (muitos)
cabelos grisalhos cultivados nas emoções dos anos.
A
mente dá um salto profundo nas águas do passado, algumas
vezes turvas outras não, para deparar-se nos finais dos anos 60,
mais precisamente entre 1969 e final do ano de 1970, nos meus quatro e
cinco anos. Minha casa estava cheia de gente, uma multidão se acotovelava
pela sala diante de um dos raros aparelhos de TV daquela cidadezinha do
sertão cearense. Fogos de artifício eram acionados a cada
gol da seleção de futebol do Brasil e o País delirava
com o Campeonato Mundial, enquanto lá fora uma terrível
ditadura militar espalhava seus tentáculos pelo país, porém,
isso não me despertava atenção, já que a minha
preocupação era me apoderar das pistolas de artifício
já detonadas, que serviriam de brinquedo para aquele garoto de
uma timidez incomensurável, quieto e observador. Talvez até
por essas características consegui aprisionar na memória
tantas cenas.
2.
Acredito
que as casas possuem alma própria, possuem vida que interage com
a vida de seus habitantes, havendo uma estreita relação
dos atos dos que ali habitam, das decisões por eles tomadas quanto
aos seus destinos e a força emanada, a energia advinda das paredes
da habitação. Aquele velho casarão na esquina da
Rua Padre Sarmento com a Pedro Jaime Benevides¹, construído
no ano de 1904, por meu bisavô José Fagundes², emanava
uma energia grandiosa de suas paredes enormes erguidas com espessuras
de quatro tijolos antigos e imensos, do teto altíssimo, do ar respirado
por um número incontável de gente. Aquela casa foi freqüentada
por pessoas que fizeram a história daquela pequena cidade. E dali
tirei o combustível necessário para os meus sonhos e fantasias
desde a mais prematura idade. A minha ligação com aquela
casa era de uma estreiteza sem precedentes, era ela, minha amiga, irmã,
confidente. Conseguia obter respostas de suas figuras evanescentes que
lá habitam, sem que no entanto as pessoas a vejam. É entre
essas e outras coisas que a maioria tem a visão turvada. Porque
as pessoas só conseguem ver o que realmente querem. O marcante
na minha mente infantil foi que sempre acreditei que em um canto de uma
das salas, havia algo enterrado, uma botija, que nunca tive coragem suficiente
de buscá-la. Ficava por longo período diante daquele local,
todavia, algo tenebroso, que não sei explicar ao certo, me impedia
de agir. Estarão sempre presentes em minhas reminiscências,
os momentos de brincadeiras de esconde-esconde, por entre aquele sem número
de quartos além do quarto subterrâneo. Sinto saudade do rangido
rouco das dobradiças antigas, como se as portas quisessem denunciar
alguma coisa. Hoje, aquele casarão me faz lembrar de gente, burburinho,
vozes, como se o coração daquela pequena localidade pulsasse
ali, que de forma contrastante com suas linhas antigas, ansiasse por futuro.
Vez por outra aquela pressa sufocava-me, contrapondo-se com a minha personalidade
em formação, buscando calmamente e sem compromisso um elo
de ligação com este planeta, para mim, ainda desconhecido,
de onde achava-me meio estrangeiro. Nunca pensei que poderia ou conseguiria
me separar daquela casa, no entanto longe estou, muito embora fisicamente,
porque carrego comigo, aonde vou, aquele lugar, cada cômodo, cada
reentrância, até os mais escuros e aparentemente sombrios,
como também os seus fantasmas, respiro aquele lugar e ele estará
sempre comigo. Sempre.
3.
Logo
salto para o ano de 1971, e a imagem vem nítida na memória,
minha mãe a me segurar pela mão. Caminhamos rumo ao Centro
Educacional Castro Alves, onde eu nasci como estudante. Dona Mazé
– minha primeira professora. Uma mulher baixinha de estatura e tão
grande no empenho de abrir os horizontes das primeiras letras para aquelas
crianças. Tinha cinco anos de idade e caminhava calado, sem reclamar,
já que o ato de reclamar só chegou e fincou morada em minha
personalidade após a adolescência. A distância de minha
casa para a escola, um pouco mais, um pouco menos de trezentos metros,
que eu percorria com o coração quase sumido de tão
pequeno e apertado, transformando na mente aquela distância tão
curta em trezentos quilômetros. Era o desconhecido do lado de fora
das quatro paredes do meu habitat natural, amedrontando a mente infantil,
ainda desconhecedora dos percalços da vida, e já sentindo
os primeiros traços de uma melancolia, companheira fiel de caminhada.
Mas eu tinha um lugar para voltar. Eu sempre soube que voltaria. Um mundo
só meu, povoado de árvores frutíferas e pássaros
cantantes. O quintal da casa da Dudu – uma de minhas tias-avós,
local onde chamávamos de muro, para mim, uma floresta encantada
e desprovida da presença do medo, lugar onde dava formas aos sonhos
e tinha o poder, só meu, de transformá-los sempre que quisesse,
nunca destruí-los. Na sombra de minha floresta encantada me invadia
um sentimento de poder e de liberdade, e lá alimentei todos os
sonhos que carreguei dia após dia, desde a tenra idade até
a rebeldia controlada da adolescência. Naquele local construí
casas de tijolinhos e barro, com formas e tamanhos os mais diversificados,
exercitando o talento daquele menino-arquiteto, que caminhos futuros e
estorvos da vida ajudaram a desviar a rota para outra direção.
4.
De
repente me vejo na adolescência e lá vai o menino tímido
para um comício político, ouvir deputados oposicionistas
em discursos contundentes, dizerem não aos coronéis da época,
patronos do regime de exceção. Ficava meio escondido num
canto qualquer, com inveja emocionada daquele poder de oração
que eles exercitavam. Fica fácil voltar no tempo e ver Plácido
Castelo, com olhos sempre marejados de água ao pronunciar a palavra
Mombaça – seu berço, encravada nas terras que foram
de Maria Pereira – minha nona-avó, como se nos dicionários,
Mombaça, literalmente significasse saudade ou até mesmo
paixão. Aquele homem apaixonado por sua terra, talvez se sentisse
muito melhor dirigindo aquela cidadezinha, em vez de governar o Estado
do Ceará. E o tempo vai passando, e sempre será assim, muitos
ficando para trás, no meio do caminho. Algumas figuras bem nítidas
na memória, outras nem tanto, a maioria no esquecimento total e
cruel. O ostracismo e o esquecimento me faziam questionar o porquê
de estarmos nesta vida terrena, se o destino real e definitivo é
virar poeira da estrada. Questionamento filosófico e resposta inaudita.
E
por falar em adolescente, recordo-me de paixões juvenis curtidas
em silêncio, no esconderijo da timidez cortante e embaraçosa,
que me impedia a aproximação, a abordagem mais contusa da
garota pretendida, fazendo o corpo tremer e as palavras sumirem como num
passe de mágica, ao olhar naqueles olhos negros. Oportunidades
perdidas ao longo da adolescência pela simples insegurança,
palavra que com o tempo, para mim, perdeu o prefixo. O que restava para
aquele garoto embaraçado, senão regurgitar os sentimentos
doídos, rascunhando no papel, hoje, amarelado pelo tempo, que há
dois dias encontrei entre papéis velhos daquela época, e
que ainda não tinham ido para o seu destino certo - o lixo. Aquele
garoto sonhador certamente se viu trancado dentro de si, pois assim rabiscou:
Me vejo trancado dentro de casa, dentro
de mim.
Lá fora um bêbado tomba.
Sinto medo da chuva que cai.
Sinto medo da cortina escura,
medo da solidão.
O amanhã é tão obscuro.
A insegurança me invade o ser.
Estas quatro paredes são um presídio,
mas a imensidão lá fora é perigosa.
Preciso da prisão dos seus braços para me libertar,
preciso do brilho dos teus olhos para enxergar o meu eu.
Preciso dos teus lábios para nutrir minha vida.
Até quando esta chuva
vai enegrecer minhas noites.
O sol.
Quero gritar pelo sol,
quero que o calor aqueça
os corações congelados de nada.
Não posso sair
mais do que meu passo
do outro lado da rua.
Não vou fugir,
pois as selvas-de-pedra
são mais solitárias que meu quarto vazio.
Mas o silêncio atormenta-me os tímpanos.
É ensurdecedor o silêncio de sua boca.
Meu amigo você partiu.
Que não parta junto a esperança do coração.
Meu amigo, o seu sorriso ficou, a sua fé ficou,
só não ficou a sua necessidade
de lutar pelo dinheiro.
Mesmo que você nem queira,
mesmo que seja necessário.
Sabe! Existem ainda, muitas pombas da paz.
Elas sobrevoam os corações da gente.
É que a guerra do dia a dia
não conseguiu abatê-las.
Estão apenas esperando
uma chance de pousar.
Estenda os braços.
Sinta.
Apesar da escuridão lá fora,
vale a pena viver.
Meu amigo,
eu queria mesmo era falar daquela mulher,
que veio de mansinho,
que ficou, que partiu,
que está em cada rua de minha vida,
em cada esquina, em cada bar.
Que tá no açude,
que tá na quadra, que tá no jogo,
que tá na vida, que tá em mim.
Eu não posso jogar fora os meus sonhos,
construídos e sofridos todas as horas.
Fique certo,
o sol vai sair
e eu vou caminhar.
Vou caminhar até encharcar de suor
aquele meu velho jeans.
Olha lá fora, meu irmão,
se o sol já vem.
Se vem dá um sorriso, milhares de sorrisos.
Quanta gente ficou para trás, eu não queria.
Mas muita gente andou bem depressa
e é inevitável a caminhada.
Meu amigo,
onde é mesmo que vou encontrar
aqueles lindos cabelos negros?
Será que vou vê-la lá na esquina
ou terei que ir jogar.
Talvez eu a veja na Avenida Paulista.
Mas é preciso ir tão longe
para tocar nos seus lindos cabelos negros?
Tudo é uma incógnita,
só não a saudade que trago comigo.
Olho
para trás e lembro-me das quantas vezes que juntos jogamos voleibol,
sentamos para longos papos e tomamos banho de açude. E era sempre
assim, quando ela chegava do sul do país para passar férias.
O tempo seguiu o seu rumo e vejo que hoje, certamente, não sentiria
o menor problema em dirigir-me a ela e falar de sentimentos. As suas vindas
escassearam. Nunca mais tive notícias daquela menina bonita de
longos cabelos negros e olhos brilhantes, logo, já se passaram
vinte e dois anos.
5.
Uma
coisa que até hoje me faz extrema falta é aquele campinho
de futebol de terra batida por trás da Escola Pedro Jaime, onde
diariamente, após as aulas, chovesse ou fizesse sol, desfilávamos
nossas ilusões perdidas, tentando ser um Zico, um Roberto Dinamite
ou um Rivelino. Deveria ser inserido na Constituição, o
seguinte artigo: é obrigatório que todas as crianças,
desde o nascimento, possuam e portem uma bola de futebol. Estaria, então,
institucionalizado o sorriso e o brilho nos olhos infantis. Nada se comparava
para minha mente ainda perdida no burburinho dos sonhos, à emoção
de um gol. Vestíamos velhas camisas rubro-negras desbotadas, já
usadas e depois doadas, por outros garotos que podiam comprar o terno
de futebol, mas não o talento. Craques mesmo, eram meus companheiros
de time, Paulinho do Mestre Có e Tarcísio “Palito”
Queiroga. Se o mestre Armando Nogueira tivesse tido a oportunidade de
vê-los driblar, com certeza, teria recebido a inspiração
para mais um poema futebolístico. Gostaria de voltar no tempo,
e pelo menos por um momento apenas, usufruir na pele, no coração
e na alma, as emoções sentidas naquele campinho que existiu
na vida de minha turma, e que agora só sobrevive na memória
de alguns. Não é que ergueram um muro alto e enterraram
junto a liberdade da molecada. Que adianta não poder pisar a terra
de pés descalços, sentir a água da chuva banhar o
rosto, a bola dengosa prender-se vagarosamente nas poças d’água,
sentir-se vivo? Deveriam ter afixado uma placa: “Aqui jaz alguns
meninos garrinchas e seus sonhos”.
6.
Muitas
vezes delineiam-se na memória, figuras esquálidas, andando
pelas estreitas ruelas de minha cidade, que no passado possuíam
um nome, único bem pessoal que conduziram pelas desgraçadas
vidas. Na verdade não posso nem dizer que essas figuras possuíam
na realidade nomes, eram apenas apelidos pejorativos, que seus donos nutriam
verdadeira ojeriza. Lembro-me que sentia medo daqueles espectros de gente,
além de sentir, também, pena ao ver corações
desalmados a xingá-los nas ruas por “Chica Perdida”
e “Zé da Onça”. Chica era uma senhora extremamente
gorda, pés inchados, talvez pelo peso excessivo, marca de feridas
nas pernas, sempre empunhando sacos sujos, nos quais conduzia as esmolas
que alguns lhes dava. De Zé da Onça, só me recordo
de um velho chapéu de palha e calças remendadas e arregaçadas
acima dos tornozelos. Nunca soube os seus verdadeiros nomes, nunca os
saberei. Somente a certeza de que nunca pude fazer nada para defendê-los
de uma vida absurdamente soturna, e, se é verdadeiro a existência
de Deus e de outro lugar no além, eles estarão sendo recompensados
pela infeliz passagem terrena. E como lembrança vai puxando outra,
puxei pela memória o nome daquele velhinho que engraxava sapatos,
na rua que ainda chamavam rua do comércio, no coração
da cidade. Não sei o motivo de achá-lo simpático,
já que nunca se dirigiu a mim, acho até que nunca ouvi a
sua voz. O que mais me chamava atenção, era aquele tamborete
de pernas tão compridas que jamais vira, onde os transeuntes sentavam
para polir os sapatos, contrastando com aquele profissional de flanela,
tão baixinho. E não é que de repente me veio o seu
nome: “Raimundo Engraxate”. Engraçado como muitas vezes
as profissões se agregam ao nome dos profissionais que as exercem.
Ele foi o primeiro profissional daquele ramo que conheci, até a
invasão desenfreada dos tênis, esses, eleitos inimigos declarados
dos engraxates e suas caixas.
7.
Hoje
a saudade que sinto é a saudade de mim mesmo, do menino que fui,
de meus questionamentos silentes, das fugas constantes para o meu interior.
Não sinto saudades dos dias nublados e chuvosos, que nem sempre
me traziam alegria, diferentemente da grande maioria das outras crianças,
que de velhos calções e pés no chão tomavam
banho nas bicas, na água correndo da boca dos jacarés, das
casas da minha querida Rua Padre José Sarmento, a Rua da “Goela”,
que acredito particularmente, ter esse apelido devido a sua pouca largura.
Vale salientar que os jacarés (canos por onde telhados expeliam
a água das chuvas com forma de um jacaré de boca aberta),
já quase não existem mais, desaparecidos com o advento de
novos modelos de construções, que ajudam a passar uma borracha
nas lembranças materiais do passado. Nem sempre pude compartilhar
da alegria daquela criançada a molhar-se na chuva, brincando pelas
ruas encharcadas com água correndo em abundância no meio
fio. Ficava espiando pelas frestas das janelas, aqueles momentos de liberdade,
aprisionado por uma possível crise de garganta passível
de chegar, caso mergulhasse naquela liberdade festiva e barulhenta. Aliás,
vez por outra em que podia escapar, dirigia-me à Rua do “Velame”
(Rua José Frutuoso Sá Benevides), para ver a enxurrada que
quase sempre cobria as calçadas. Sempre acreditei que num tempo
remoto, aquele local fora o leito de um córrego ou riacho, modificado
com tijolos e pedras de paralelepípedo, que aos poucos deram forma
a uma rua da cidade. Só sei que lá, a água, durante
e após as chuvas, sempre correu em abundância, na busca incansável
de misturar-se às águas do velho Banabuiú, um rio
que sofreu de uma agonia lenta e gradativa, quando começou a receber
os dejetos dos esgotos da cidade, e mesmo assim, valente como um sertanejo
resiste no tempo. Talvez por vingança, durante longo tempo e anualmente,
no período chuvoso, o velho e sofrido Banabuiú tragou nas
águas de suas enchentes, várias vidas mombacenses, deixando
marcas doídas no coração dos que ficaram.
8.
Muitas
vezes não nos damos conta da importância das pequenas coisas
da vida, até o momento que as perdemos ou que necessitamos delas.
O ar que respiramos. O ato de respirar por ser corriqueiro, comum a todos
os seres vivos, e por assim dizer natural, nos passa despercebido. Não
nos damos conta do prazer, da felicidade que é o simples ato de
enchermos o pulmão de ar. Dei-me conta disso, numa madrugada dos
meus quinze para dezesseis anos, quando saltei da cama em busca do tão
precioso ar. Tentava sugá-lo para dentro de mim desesperadamente,
mas algo impedia o ar de entrar por entre os canais que o levariam para
os meus pulmões. Alguns momentos de tensão e medo, que foram
se repetindo a cada madrugada e depois em espaços mais curtos,
também, no período diurno. Fui apresentado, pela primeira
vez, a um leito de hospital, e gostei bastante de um companheiro ao lado
da cama, conhecido por balão de oxigênio. Por um período
ficamos bastante íntimos, já que ele conseguia levar aos
meus pulmões o ar que naturalmente eu não conseguia aspirar,
momento que comecei a cultivar um sentimento que ainda trago dentro de
mim, sempre que me fazem algo de bom, a gratidão. Às vezes
sentia que chegara a hora da despedida definitiva. Apesar daquela pouca
idade adolescente, revi como num filme a minha vida até ali. Achava
muito cedo para partir num caminho definitivo e sem volta. Fechar os olhos
e mergulhar na escuridão cruel do esquecimento. Ser podado tão
cedo da oportunidade de trilhar caminhos ermos e desconhecidos em busca
de algum momento perdido de felicidade. Descobri que os primeiros quinze
anos de vida não são suficientes para sentirmos o poder
incomensurável e muitas vezes doloroso, daquele músculo
latejante que trazemos do lado esquerdo do peito. A verdade é que
alguma força superior decidiu que não era chegada a minha
hora e resolveu me dar mais tempo e oportunidades para quebrar a cara
pela vida e seguir adiante. O certo é que superei aqueles momentos
difíceis e hoje permaneço aqui para contar essa passagem
da vida. Só lamento até hoje que as economias que meu pai
tinha guardado com tanto sacrifício tenham sucumbido, para que
eu permanecesse apreciando o ato de respirar. Foi o preço literal
da respiração.
9.
A
vida algumas vezes nos prega peças, outras vezes nos dá
compensações que nunca serão explicadas. Nininha,
minha querida tia-avó, para mim avó de verdade, daquelas
programadas para estragar o neto, por fazer-lhe todas as vontades, e dar-lhe
um amor real e verdadeiro sem nada pedir em troca. Nunca esquecerei da
felicidade e da segurança que desfrutava ao deitar-me em seu colo
e aninhar-me em seus braços de mãe-avó. Às
vezes me pego ouvindo-a cantarolar aquelas ladainhas religiosas. Ela casou,
enviuvou cedo. Nunca teve filhos. Eu fui o único filho que ela
elegeu para distribuir todo aquele amor, que estava reservado para um
filho biológico que nunca veio. Cuidou de mim desde que de forma
não natural, saltei do ventre de minha mãe, através
das mãos de um cirurgião, para esta minha caminhada meio
louca e imprevisível. Deu-me, papa na boca, seus braços
para aninhar-me do frio e a certeza de que, ironicamente, não precisava
ter medo, pois aquela velhinha pequena e quase surda me protegeria das
asperezas da vida. Interessante que na mesa de cabeceira onde conservava
a imagem de seus santos, conservava também uma foto minha quando
criança. E foi assim por longo tempo, até que ela iniciasse
sua caminhada ao encontro dos antepassados. E durante sua agonia, revezávamos,
eu e meus pais, noite sim, noite não, para ficarmos em sua companhia,
à espera de sua partida. Então o destino se apresenta diante
de mim como um presente, uma compensação, que ainda duvido
se fiz por merecer. Numa fria noite em que fiquei velando o sono de Nininha
ela resolveu nos deixar. Acendi uma vela colocando-a em suas mãos,
até que ela partisse para sempre. Ainda passei alguns minutos a
sós com ela para me despedir e agradecê-la por tudo que tinha
feito por mim. Mas ela já não me ouvia, e então perdi
a oportunidade de dizer-lhe o quanto a amava, minha única e sempre
“vozinha”. Depois, fui chamar meus pais que moravam na casa
vizinha. Ao amanhecer muitas pessoas se achegavam para o velório,
e eu, em momento algum chorei.
10.
Sentia
muito a ausência de um trem que atravessasse minha terra. Ficava
tentando ouvir ao longe aquele barulho característico das marias-fumaça
e o piuí do apito avisando da chegada, algo que só conseguia
apreciar nos filmes antigos. Não entendia o motivo pelo qual eles
nunca chegavam. Até o dia que resolvi não esperar mais por
eles, afinal como poderiam aparecer se nunca construíram uma estação,
onde as pessoas pudessem chegar e partir? Fiz como aprendi a fazer ao
longo dos anos - desviar o pensamento, afastar as lembranças, aprisionar
num fosso profundo da alma o indesejável, o irretorquível,
o imutável. Há muito não penso mais neles.
(1)
Equivocadamente o autor cita Pedro Jaime Benevides ao invés
de Manuel Irênio de Sousa.
(2)
José Camilo de Lima, o José Fagundes, era bisavô materno
do autor desta crônica e do editor deste site e dá nome a
um logradouro em Mombaça, a Travessa José Fagundes.
(Crônica
publicada no livro “Sertão: olhares e vivências”,
organizado pelo Fórum Clóvis Beviláqua, p. 24-42.)
Música-tema
da página: Lamento Cigano, interpretada pelo Grupo
Rorarni.
Untitled Document
*Raugir
Lima Cruz. Oficial de Justiça da Comarca de Quixelô-CE.
É mombacense de Senador Pompeu, Ceará, onde nasceu no
dia 15 de janeiro de 1966, filho de Etevaldo Lima Cruz e de Francisca
Zeneida Lima Cruz. Graduou-se em Pedagogia na Faculdade de Educação,
Ciências e Letras de Iguatu - FECLI. É bacharel em Direito
e pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela Universidade
Regional do Cariri - URCA. Obteve o 2º lugar no Concurso Literário
Rachel de Queiroz, promovido em 2006 pelo Fórum Clóvis
Beviláqua em comemoração aos 30 anos da sua biblioteca,
com a crônica “Respingos
da estrada em dez atos”.
A sua crônica foi publicada na coletânea “Sertão:
olhares e vivências” com os dez trabalhos classificados
no referido concurso. No dia 18 de dezembro de 2007 recebeu o título
de cidadão quixeloense concedido pela Câmara Municipal
de Quixelô. É autor dos artigos "Uma análise principiológica e legal das interceptações telefônicas: a produção probatória à luz do princípio da proibição da proteção deficiente", publicado na edição nº 87, ano XIV, abril/2011, da Revista Âmbito Jurídico e “A aplicação da Willful Blindness Doctrine na Lei 9.613/1998: A declaração livre e a vontade consciente do agente”, publicado no volume nº 9, edição 2011, da Themis, revista científica da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC).
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