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HISTÓRIA


Plácido Aderaldo Castelo

DISCURSO DO DEPUTADO PLÁCIDO CASTELO

 

Sr. Presidente e Srs. Deputados:

Nas cheias do Banabuiú, quando as águas barrentas começavam a clarear, garotos de oito anos, nos lançávamos à aventura temerária. Acreditávamos nas cabaças ligadas pela corda resistente, colocadas sobre o umbigo. Acompanhando a cruz do Pelo Sinal com o borrifar da água no rosto, tibungávamos no rio, alegres, dando-nos ao azar da correnteza.

Revejo-me, hoje, no menino de oito anos, enquanto outras cenas ganham relevo e nitidez. Na casa abandonada de uma rua da vila natal, marcava encontro com companheiros de idade, de todos os tons. Preparava-se a espada de madeira, quase do nosso tamanho: era a arma do batalhão que eu chefiava, o da rua-de-baixo. Rabelista, anima o encontro, certo dia, com o batalhão da rua-de-cima, o dos marretas. deu-se a escaramuça. Mas o avô, chefe austero, dissolve o tumulto. Fica a pendência. No dia seguinte, ao sair de casa sozinho era esperado por duas figuras principais do grupo adversário. Conjecturei: se continuar, apanho, são dois, estão armados; se recuar, ficarão gabolando: ele teve medo. Entro na casa próxima, de meu padrinho. Procurarei combinar com o João Ferreira – nele eu confiava – o que fazer para devolver a afronta. Um vez com o amigo humilde, conseguimos um pedaço de cano de chapéu-de-sol, do tamanho de uma chave, um pedaço de madeira em que trabalhamos no engaste para o cano, já vedado, numa das extremidades e feito aí um furo lateral. Com pólvora, chumbo e buxa, ficou preparado o nosso revólver. Faltava experimentá-lo: tocamos a brasa do cigarro no furo lateral queimando a pólvora, e a detonação confirmou a maravilha do nosso engenho, capaz de aniquilar a força dos homens. Os dois marretas, então, tiveram conhecimento do encontro desejado. Mas antes já havia sido comunicado à excelsa Mãe deste chefe mirim do rabelismo, a notícia de que ele era portador daquela arma. É que o pai, como bom cearense, estava no Amazonas, nos seringais. E para salvar o destemido chefe, como sempre, surgia aquele Anjo. Revistado, foi desarmado. Ao encanto da Mãe, linda e prendada, que o embalava com voz maviosa, não faltava energia, evitava-se um incidente que poderia ter sido grave. Contudo, não houve frustração nesse episódio: aceitaria o castigo merecido, mas não esqueceria a delação.

Mas um ano, em pleno 1915, o pai regressava do Amazonas. Sendo eu o mais velho dos irmãos fui escolhido para viajar com um tio, alpendrarmo-nos na vila vizinha, por onde passava o trem de ferro. Deveríamos aguardar a chegada do meu pai, cuja lembrança me era vaga. Foi nessa ocasião que conheci a locomotiva, os carros de passageiros, pois vivia num mundo em que a civilização ainda não penetrara com o transporte moderno. Até aquele momento, viajara somente de Maria Pereira para Tauá, vinte léguas, dois dias a cavalo, durante os quais nada faltava. Para sempre, ficou a recordação da carne seca no arroz, a facilidade do preparo das refeições gostosas.

O avô paterno havia regressado dos Inhamuns com os filhos, trazendo gado, numa retirada que quase levou a família à derrocada econômica. Vinte léguas, sem pasto, sem água. Gado faminto e sedento, só encontrava o tingui traiçoeiro, que mais aumentava a perda do rebanho. Impunha-se-nos uma conduta: com os meus dois irmãos, passamos a ajudar nosso pai, a reconstruir o perdido. Fizeram-me responsável pelo armazém em que se acumulavam forragens: salsa, maniva, capim de vazante, mandacaru queimado. E meu pai perdia gado, mas comprava vacas paridas a seis, sete e onze mil réis: ano passado, valiam dez vezes mais; decorrido ano novo quinze vezes.

Viriam outras experiências: já era senhor da leitura e da escrita, passara pelo primeiro, pelo segundo e estava no terceiro livro de Felisberto de Carvalho. Ao lado dos irmãos, do pai, enérgico, circunspecto, mas carinhoso, era-me confiado pelos anos o armazém, certo de que eu sabia classificar peles de ovinos e caprinos, distinguir couro de boi de morrinha, de couro de boi de matutagem. No sertão do Ceará, o normal é o comerciante também ser agricultor. Cuida do sítio, pequeno vale à jusante de barragem de terra, para plantio de cana, destinado ao fabrico da rapadura. Semear a roça para o cultivo do algodão e cereais, nas terras altas. Comigo, o irmão mais moço, hoje engenheiro civil e de minas, abalizado professor, plantava sementes, ajudava a levar à roça o almoço para adjuntos, 40 a 50 homens; igualmente, nas madrugadas da época de moagem, botava um, a cana no engenho, enquanto o outro tangia os bois. Certo dia, observando que a cana era melhor, indaguei do meu pai a procedência dela. Soube que era do “Macaquinho”, então pensei: o “Macaquinho” será meu. De fato, veio a ser, como fora anteriormente do primeiro deputado que a minha terra elegeu, o Padre João Antônio do Nascimento e Sá, presidente desta Casa; depois, de outro deputado, o Prof. Pedro Jaime de Alencar Araripe; dos Prefeitos Silvino Benevides e João Fernandes Castelo, meu pai.

Registro nova mudança profunda: meu tio, que era padre – Lino Aderaldo – convenceu o cunhado de que o adolescente precisava estudar na capital do Estado. Já contava catorze anos, lia o 4º livro de Felisberto de Carvalho. Ao receber a notícia, noto lágrimas nos olhos de quem jamais vira chorar: você estudará, tudo farei para que seja bacharel em Direito por S. Paulo. Não entendera bem aquilo. Seria interno em colégio particular, depois avulso, nos cursos do Liceu do Ceará. Dar-se-ia o desaparecimento inesperado de um tio, em casa de quem me hospedava com mais seis primos. Verdadeiro pânico: seria o regresso de todos à terra natal, a interrupção dos estudos.

Soubemos que no colégio particular do saudoso professor Joaquim Nogueira, precisava-se de um auxiliar. Não hesitei junto aos parentes: não voltarei, vou conseguir o lugar. A declaração foi recebida quase com hostilidade, ao mesmo tempo que se feriam os brios do moço. Procurei o professor Joaquim Nogueira, conversamos, acertei comparecer dia e hora. E o Diretor, após a aula que ministrava, convidou o jovem candidato a ocupar o posto. Pus em prática o que assimilei naquele momento: “que analogia há entre as palavras pão, mão, são? – Palavras monossilábicas. – Outra analogia? – ditongos nasais. E continuei: que analogia, entre as palavras: Fortaleza, Natal, Belém? – São substantivos próprios locativos. Outra analogia que não seja gramatical? – São capitais de Estado”. E assim, intercalando conhecimentos gerais, terminei a aula. Fui aceito, ganharia 25% do que pagavam os alunos. Mais de setenta mil réis, importância que me livrava de regressar ao sertão. Trabalhando, ensinando, concluí o curso, pedi permissão para viajar para Ouro Preto, queria ser engenheiro. Pela primeira vez, teimei com meu pai, que me queria bacharel em Direito. Digo a primeira, a maior, a única malcriação, pois fui categórico: meu pai, não me formando em Ouro Preto, não me formarei em nada, não vive somente o homem formado. Mas o sonho do pai, nascido do amor ao filho, era insubstituível.

Fui matriculado à revelia. Mantive meu compromisso com quem seria a companheira e mãe dos meus filhos, tomei parte nas lutas acadêmicas, presidente do órgão da classe, em luta renhida, terminaria orador da turma. Com colegas, Paulo Sarasate e Perboyare e Silva fundamos um panfleto contra o governo. Destemido, o semanário. O Governador era considerado “uma moleza feminil”. Veio a contrapartida: fomos presos. Se chorou a mãe do jovem panfletário, o pai ponderou que as prisões em defesa dos interesses coletivos enobrecem os homens.

Finalmente, o ingresso no Ministério Público, depois na magistratura, e daí na política. Deputado Constituinte, Secretário de Estado, Deputado às legislaturas ordinárias. Na minha carreira na vida pública, pela imprensa, na magistratura, e sobretudo na política, considero definitiva a minha experiência humana, aqui evocada em traços rápidos, através de momentos decisivos, desde a infância no sertão querido de Mombaça. Considero que a realidade afetiva dosa o raciocínio que planeja e executa. Reconheço, portanto, convictamente, que nela se alimentou e se alimenta o estímulo das minhas iniciativas. Daí, certamente, porque não esqueceria a impressão da falta d’água que matava rebanhos, e me empenharia mais tarde em projetos que, aprovados, determinariam a cooperação do Estado na construção de açudes particulares; lembranças da infância, conhecimento do artesanato de Juazeiro do Norte, se refletiriam em campanhas pela criação de escolas normais e profissionais; à memória, não fugiriam, os juros cobrados ao fazendeiro e criador, para negociar e desenvolver a agricultura: proporia leis regulamentando o crédito agrícola, a previdência social; ao mesmo tempo, tomando interesse por assuntos e problemas vários que escapavam à minha especialidade, não me faltariam estímulos de terceiros para proporcionarmos conjuntamente o bem comum.

Hoje, prezadíssimos colegas, o menino, o adolescente, o jovem acadêmico, o magistrado, o deputado, é eleito tendo como companheiro meu prezado amigo, Gal. Humberto Ellery, Governador do Estado, a terra amada. Ocorrem-me, então, como referências incisivas, tomadas às campanhas políticas, determinados slogans que a história registra: “do governar é povoar, governar é educar”, dos argentinos Alberdi, Rivadavia e Sarmiento, adotado por Afonso Pena, do “governar é povoar”, e por Washington Luiz, “governar é abrir estradas”, a Costa e Silva, nos dias de hoje, quando lembra que alguém disse que “governar é escolher”, esclarecendo, ao ser interrogado sobre o seu programa de governo. Nunca como agora se impõe ao Governante atentar para as grandes palavras da Bandeira Nacional: Ordem e Progresso: aí estão os dois grandes problemas que, dia a dia, e fervorosamente, terei de enfrentar. Ao problema da ordem, darei o seu sentido atual: por um lado, combater ou fazer malograr a subversão comunista, se persistente, obstando, por outro lado, tendências e práticas corruptas na política e na administração. Ainda, dentro da ordem política e social, administrativa e financeira, propiciar um ambiente democrático em que a paz e a liberdade se abracem. Progresso, de seu turno, traduz-se modernamente pela palavra desenvolvimento. Não emprego o termo com o estrito sentido de progresso econômico: desenvolvimento é o processo de acelerado progresso geral, tanto na ordem econômica como cultural e social e dizendo respeito tanto à nação, no seu todo, como a cada pessoa, o fim último e maior de toda política verdadeiramente democrática. Impulsionarei esse desenvolvimento, abalançar-me-ei a um conjunto de empreendimentos dentro das grandes tarefas:

1 – de promover em todo o País, como base geral da nossa riqueza, uma agricultura florescente e em regiões adequadas cada vez mais numerosas uma estrutura industrial vasta e poderosa;

2 – de tornar mais amplo e bem aparelhado o nosso sistema de transporte e comunicações;

3 – de fazer mais justa e mais plena a política trabalhista;

4 – de dar organização melhor e mais eficácia à previdência social;

5 – de incrementar as pesquisas científicas de todos os gêneros, assim como a criação literária e artística e tornar mais extensa e aperfeiçoada a organização do ensino de todos os ramos e graus;

6 – de aumentar e melhorar os serviços de prevenção e tratamento de saúde;

7 – de impulsionar uma boa política de habitação e alimentação.

Essas tarefas são todas igualmente essenciais e não há que preferir entre elas. O seu conjunto sistemático é que poderá dar força e riqueza ao nosso país e proporcionar o bem-estar social de nível cada vez mais elevado e extensivo a um número cada vez maior de brasileiros. Famoso homem de Estado de nosso tempo pôs em voga o princípio de que “governar é escolher”. Bem sei que no governo, como em tudo, o melhor é estabeler limites que tentar milagres. Terei que escolher, dentro de cada uma dessas tarefas impreteríveis, as prioridades, os empreendimentos de necessidade e urgências maiores que o cuidadoso estudo das circustâncias, com seguro planejamento, venha a impor ao continuado esforço do meu Governo.

É o que todos nós pretendemos, com suficiente convicção para realizar.

Ao despedir-me, neste instante, dos meus companheiros, quis dar-lhes um pouco de mim mesmo, nessa fusão quase confidencial de lembranças afetivas que me são profundamente caras, com as minhas convicções cívicas. Fui movido, e assim me deixei levar espontaneamente, pela sincera admiração que venho guardando e guardarei de todos, de hoje e de ontem, acumuladas durante mais de vinte anos de convívio nesta Casa.

Em uns, reconheço a ousada atitude que sabem tomar, em outros, a moderação, a persistente conduta de excelentes líderes, em todos a demonstração de saberem zelar pelos seus mandatos, neles acreditam sempre, como representantes da coletividade cearense, visando a grandeza do homem, para o progresso geral do Brasil.

(Palmas prolongadas).

(Discurso do deputado estadual Plácido Aderaldo Castelo proferido após ser proclamado governador do Estado do Ceará. Ata da Segunda Sessão Especial da Quarta Sessão Legislativa da Décima Sexta Legislatura da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, em 3 de setembro de 1966).

Música-tema da página: Odeon, de Ernesto Júlio Nazareth (1863-1934), pianista e compositor brasileiro, considerado um dos grandes nomes do "tango brasileiro" ou, simplesmente, choro.


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